João Dias e as Pinturas Cegas para o Tacto
O que faz João Dias desde que se formou há poucos anos em Belas-Artes (melhor, aliás, este termo mais abrangente – digamos – do que Pintura, disciplina na qual se formou, de facto)? O que faz?
Eu diria que o João faz muito daquilo que já fazia na sua fase de formação, o que significa que uma fase de formação já pode ter “estatuto” de afirmação autoral (naturalmente). Faz, como fazia, baixos-relevos de tinta, consegue praticar o desenho em poliestireno ou madeira (portanto, “fora” da folha ou da bidimensão), tudo alternando com uma vocação para tratar a cor com o máximo de intensidade lumínica (gerando esculturas pictóricas e extremamente artificiosas ou artificiais), em suma, nesse medium que tem a cegueira como essência (a pintura), João Dias vê na luz (se eu disse “cegueira” foi porque a luz cega, como se sabe – olhe-se para a sua fonte!!), João Dias vê na luz a origem da pintura, a que acrescentaremos a cor (que é a consequência imediata da existência da luz!), origem essa que é o objectivo de um qualquer “arqueólogo” da pintura, para ir ao encontro do título desta exposição.
Ernst Bloch, nessa obra monumental que é “Princípio Esperança” fala-nos de consciência e “olhar interior”, e “olhar para o interior”, e diz-nos algo que podemos alargar a todas as formas de olhares ou ao próprio Olhar: “O olhar interior nunca lança uma luz homogénea. É frugal, apenas iluminante de uma parte de nós. Não temos consciência daquilo que não é directamente golpeado pelo nosso raio de atenção. Temos apenas uma consciência parcial daquilo que é golpeado obliquamente, numa extensão crescente ou decrescente da atenção. O campo da consciência é demasiado estreito, e em todos os lados ele se apaga e se recolhe em escuros ângulos e se dissolve. Mesmo antes de um acontecimento mental ser esquecido, mesmo que não seja esquecido, muito dele não é consciente”.
Não há “arqueologia da pintura” (visando esse ponto cego que é a origem da pintura, do ver e da imagem) sem intensificação de um “olhar interior” (parcialmente cego ao exterior) e de um golpe de atenção para com o mundo (talvez cego ao interior), e numa “fusão” de ambos os escolhos são tantos, os ruídos são tantos que nada podemos fazer sem uma determinada dimensão de real, figurada no tacto, obviamente – para quem conhece este trabalho, ou o percurso de João Dias.
E temos assim a razão de ser das suas esculturas (monolíticas, que ainda evocam monumentos pré-históricos) monocromáticas mas informes (!), onde cores não naturais pontuam, temos a razão de ser das suas pinturas sobre madeiras esculpidas (gerando estranhos suportes planos mas em relevo), madeiras que são suporte e obra ao mesmo tempo, ocupando áreas rectangulares mas cheias de reentrâncias e irregulares angulosidades ou formas recortadas subtilmente, que, por sua vez, remetem para os gestos do pintor em obras como “Taking a Picture” ou “Taken Picture”.
Dar uma pintura ou tê-la dada vai ao encontro de muito do que aqui se disse: ela não depende só e apenas do gesto, mais ou menos expressivo, ela, a pintura, dá-se ou é dada, não necessariamente feita ou realizada. Ela vem de uma obscuridade paradoxal: da luz. Depois a cor é ainda tornada matéria, objecto. E a pintura perde-se no espaço e não tem limites.
Carlos Vidal, 2016