Imagens do atelier
Penas e plumas, ouriços-do-mar, crânios embrulhados em panos; uma estrela-do-mar, cavalo marinho, sementes, conchas fossilizadas. Frascos com pedras e conchas ao lado de objectos decorativos obsoletos: peças de candeeiro, vidros lapidados, pés de cama em madeira trabalhada, um saco de peles de vison herdada de uma bisavó. Um bocado de papel de parede infiltrado por raízes já secas; tacos de madeira de um chão desmontado. Ao canto, um esqueleto que se foi cobrindo de folhas secas de Orelha-de-Elefante.
Um pequeno gabinete de curiosidades que se infiltra discretamente no atelier. A Constança Clara foi enfiando as penas de pavão e as plumas da Erva-das-Pampas em carapaças de ouriços-do-mar, cuidadosamente perfuradas. As espinhas do ouriço, por sua vez, foram introduzidas em pequenos fósseis vegetais suportados em arame. Os tacos de madeira queimados fazem escamas, as folhas de eucalipto embebidas em parafina transformam-se em vértebras vegetais. Pedras tornam-se pinturas, um búzio dourado é um olho solitário. Equivalências que brotam da surpresa do encontro entre objectos díspares. Artifício de combinações fruto de um olhar atento e demorado e um zeloso trabalho manual.
Passeios e raízes
A economia de gesto: aproveitar materiais descartados, pela natureza ou pelos humanos; não querer, com a devida modéstia ecológica, pôr mais tralha no mundo. Boa parte dos materiais com que a Constança Clara trabalha são encontrados durante os longos passeios pelas praias e pinhais que costuma fazer nas redondezas de Ericeira, onde foi viver há dois anos. Objectos encontrados por um olhar que se foi habituando aos ritmos do sol e do vento, dos marés e das estações, dos astros. Um diligente coleccionismo das sobras da vida natural, que depois no atelier – lugar de gestação – se casam com outras sobras de outras vidas, coisas deixadas e herdadas, já sem uso. As pedras e conchas que sobram são devolvidas à praia.
Inicialmente estes passeios eram uma maneira de assumir um lugar, de aproximar-se de uma nova paisagem, de vivê-la e conhecer as suas mutações e permanências. Com o tempo foram-se inscrevendo intimamente na prática artística, modo de dar lugar ao nascimento – à geração – de uma obra. E acabaram por confirmar um caminho já tacteando antes: Gérmen, o esqueleto coberto de folhas assumido como origem dos trabalhos aqui apresentados, foi iniciado em 2014; o pequeno búzio sem título vem ainda de antes, memória portátil do mar durante os tempos de estudo em Londres. A Constança Clara começou a levar a paisagem consigo antes de adentrar-se nela. Raízes móveis que a acompanharam de casa em casa, de atelier em atelier. O esqueleto às costas, lembrança que trazemos sempre a nossa morte já connosco.
Imagens e equivalências
A artista conta que o que a move a trazer certos objectos ao seu atelier é a capacidade que neles adivinha de gerar imagens. Não por acaso a geração de imagens através de artifícios ópticos é outro tema muito presente, aqui na instalação onde uma tela perfurada reproduz uma uma constelação, ou nas fotografias ampliadas de rochas. Outras tantas formas de partilhar uma paisagem encontrada e apropriada, seja à escala planetária dos astros, seja à escala minúscula de um fragmento de rochedo.
Que imagens se geram desse artifício? Uma frase de Novalis (na tradução de Rui Chafes) surge com frequência na conversa: “As plantas são pedras mortas, os animais são plantas mortas.” Equivalências sobre as quais estas obras são, talvez, variações, como se a equação de Novalis estivesse inexacta e por completar, com sentidos por abrir.
Conta ainda a artista que procura aproximar-se, na sua obra, dos elementos geradores da própria vida. Talvez seria mais exacto dizer para além da própria vida. Porque está em causa a vida que brota mesmo onde (já) não parece haver vida: da pedra, da areia, de ossos e fósseis, mesmo dos pinheiros queimados que suspendeu, em 2017, na instalação “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem,” no CreativeHub do Beato. Imagens de vida que sobra à morte, sobrevivências e vestígios que renascem na geração de imagens, de novos sentidos. Busca de uma linguagem feita de crânios, fósseis, folhas secas, capaz de articular (de sussurrar) o que fica na transmutação da matéria, da passagem de um reino (mineral, vegetal, animal, humano) a outro.
Texto de Gertbert Verheij | 2018
O trabalho mostrado pela artista Constança Clara no espaço Edge Arts apresenta-nos um desafio: como olhar para um cilindro perfurado pintado de preto, colocado no meio de um business center entre um escritório de contabilidade e um ginásio? Para tal proponho uma visita a um dos primeiros instrumentos de entretenimento visual das massas no século XIX: o panorama.
Trata-se de uma estrutura circular com uma cúpula fechada e com capacidade para trezentas e cinquenta pessoas no seu interior. As pessoas, sentadas no centro às escuras, observavam telas translúcidas pintadas com imagens geradas pela passagem da luz exterior tanto pelas telas como pelo teto. Muitas vezes, para acentuar a “experiência” de 360º, esta era acompanhada também por efeitos sonoros, como música ou tambores e olfativos como fragrâncias ou o cheiro de madeira queimada. A ideia era a de que o observador estivesse totalmente imerso nesta experiência. As representações mais comuns eram de feitos de guerra ou paisagens de terras distantes e desconhecidas, contendo uma componente educativa forte.
Estas telas eram realizadas com grande esforço e detalhe nas quais os executores, com a ajuda de uma “camera obscura” (e mais tarde da fotografia), captavam a imagem do lugar ou cena minuciosamente. Trata-se de um instrumento de ilusão visual criado numa altura em que a Revolução Industrial altera radicalmente a paisagem, surgindo a necessidade de mostrar os grandes feitos da Humanidade. Neste momento pré-cinema a realidade é substituída por uma imagem.
A instalação de Constança Clara para o espaço do Edge Arts remete-nos para todas estas questões fundamentais, desde alteração da nossa paisagem até à história da derradeira ilusão ou a sua representação.
Neste espaço cilíndrico onde entramos e encontramos um tom de luz diferente gerado pela tela perfurada damos conta, não as paisagens distantes e exóticas ou batalhas épicas, mas de um esqueleto humano forrado a folhas secas e parafina. Talvez o homo vegetabilis? O observador dirá.
Para além deste trabalho, a artista apresenta também, e na sequência da sua pesquisa sobre a natureza, uma série de objetos que seriam “geradores de vida”. São fragmentos retirados da natureza, como madeira, conchas, folhas secas ou pedras no qual a artista intervém no sentido de realizar um objecto novo obviamente com cargas simbólicas e mágicas associadas.
Num período no qual lemos sistematicamente notícias sobre alterações climáticas e as suas consequências parece-me pertinente, através da revisitação da História de Arte e dos seus media, relembrar que estas alterações são reais e que toda e qualquer chamada de atenção pode ser benéfica.
Texto de Lourenço Egreja | 2018