A Falta de Forma da Palavra
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.
Ferreira Gullar
Apresentam-se 7 desenhos de Ana M. Mourão (n. 1971, Lisboa) produzidos entre 2009 e 2015, intervalo de tempo relevante na sua obra, mas mais na sua vida, uma vez que esta série corresponde ao período no qual se manifesta mais claramente a tentativa, o ímpeto e o esforço de encontrar no desenho o equilíbrio possível consigo e com o mundo que a rodeia.
A terapia, ou melhor, a psicoterapia de Ana Mourão é, assim, um encontro ao espelho, no qual se reflete, de um modo actuante e de forma autónoma, a sua presença, linha a linha. Porque a cada traço Ana parece aplicar o esforço de toda uma existência.
Com isto, vão-se abrindo imagens e espaços onde cabem todos os vazios. É fácil imaginar o silêncio do seu encontro com o papel. O corpo curvado. A atenção toda no traço. A luta contra a cisão da personalidade, o pesadelo da despersonalização.
É um duplo estado. Independente. Separado. Solitário. Faz-se da distinção entre o gesto e o tempo, entre a presença física da sua imagem e a dissolução construída da sua representação, que pretende, a todo o custo, fixar. Neste processo, diríamos, ambivalente, cabe, para além do gesto e da forma, o tempo que lhe precede e o espaço que se lhe abre diante do corpo. Neste sentido, são desenhos livres, que não pedem obrigatoriamente um interlocutor, que não convidam, necessariamente, a uma participação. O que existe é uma linguagem e o seu trajecto, onde todos, eventualmente, nos poderemos rever.
Ana passa sobre o papel. Alcança-o, extraindo-lhe livremente a matéria necessária de um enigma para o qual nem a Arte, nem a medicina, têm resposta.
Se nós, leitores das imagens, compreendermos, como num poema, o jogo da liberdade e da morte – os versos que, musicalmente, se harmonizam à nossa frente – veremos, textualmente, a condição afirmativa de uma emergência sem metáforas, onde se privilegia, sobretudo, o silêncio.
Também nas poéticas extremo-orientais ou nos ideogramas chineses há um jogo de poder com a palavra, um reconhecimento, no verso, da potencialidade da expressão visual da imagem.
Nestes desenhos há um apelo à leitura. Quase que emergem palavras, no entanto, Ana recusa-as. É quase caligráfica, familiar e legível, mas chama a si o direito de ficar à tangente do texto e de não dizer palavra. Com estas linhas a sua mão exprime o efeito do esvaziamento extremo. É defensiva por necessidade mas absorve e abre mundos. De todos os textos talvez um dia só restem traços, palavras sem forma, versos sem letras, linhas livres, despregadas, despossuídas, mas próximas, ligadas entre si por um mesmo desejo de (re) união.
António Quadros Ferro, 2016