
Emospheric Landscapes é o titulo da série em exposição no Edge Arts de Novembro a de 2013 a Janeiro de 2014 (inserida no programa de Projectos Associados Close Closer da Trienal de Arquitectura de Lisboa). Esta série explora o potencial da nova tecnologia de scan tridimensional[1] terrestre na composição de paisagens.
Emospheric Landscapes – Inês Dantas
Parto de uma investigação sobre a superfície da cidade e integração do ambiente natural com o ambiente construído, no contexto do meu doutoramento na Barttlett School of Architecture, University College London.
As imagens, mais do que um levantamento, são uma manipulação que gera questões quanto ao diálogo natureza-cultura presente na cidade. Apesar da mediação pela técnica , encontra-se presente uma construção subjectiva de ‘lugar’ e designam-se estas paisagens de ‘emospherics’[2]
Na perspectiva do trabalho em mostra, a técnica de scan tridimensional terrestre abre possibilidades no campo da arquitectura enquanto potencial especulativo. O lugar aqui representado é a Parkland Walk em Londres. A Parkland Walk é uma linha ferroviária desactivada que ao longo das décadas ganhou o carácter de faixa verde urbana, onde se estabeleceram árvores e arbustos. Os habitantes do Norte de Londres começaram a utilizar esta infra-estrutura para percursos diários e de lazer. Aqui, está presente uma inter-relação entre elementos construídos e elementos naturais, absorvida em hipóteses de novas morfologias nas diferentes situações espaciais resultantes.
As presentes imagens correspondem a diferentes perspectivas escolhidas a partir do lugar virtualmente reconstruído. Cada imagem é composta por uma ‘nuvem de pontos’ (‘point-cloud’):milhões de pontos tridimensionais específicos. As composições incluem uma sobreposição dos vários elementos captados sendo impossíveis de obter a partir de uma observação directa. O processo de composição de imagem reconstrói o lugar a partir de perspectivas subjectivamente escolhidas que demonstram a integração do ‘natural’ no ‘urbano’.
O inconsciente da Paisagem [3] – Susana Ventura
Inês decidiu registar várias situações urbanas do Parque (as situações digitalizadas demonstram graus distintos de interacção entre os elementos naturais – as árvores, a vegetação, os arbustos – e os elementos construídos – a linha de caminho de ferro inutilizada, as estradas, as pontes, os viadutos, os edifícios), utilizando a mesma técnica que utilizou em Whitfield Gardens, de um scanner 3D, compondo uma imensa floresta urbana digital, criada por nuvens de pontos que, consoante as diferentes relações que estabelecem entre si, permite extrair padrões de desenho suficientemente especulativos para o desenvolvimento de um posterior processo de desenho abstracto. No entanto, as imagens adquirem outra expressão. Nestas, surgem lugares inusitados, por explorar, mundos possíveis a partir de uma realidade desconhecida, processos novos de apropriação da paisagem e da cidade…
As imagens permitem o florescimento, único, de uma hipótese, de um potencial que a representação deve trazer consigo e deixar emergir à superfície não só da imagem, como também da apropriação da paisagem pelos corpos. Talvez um inconsciente da paisagem, que as nuvens de pontos revelam na própria oscilação entre concentração, densificação e rarefacção, assim como apreende movimentos ocultos na paisagem, que são revelados quando o modelo tridimensional se converte em imagem plana.
Há um caminho pedestre em Stapleton Hall Road [Inês Dantas: Urban Forest Path, 2013], onde as árvores crescem e filtram a paisagem, transformam-na num bonito rendilhado, num tecido bio-orgânico que cobre os edifícios e as ruas [Inês Dantas: Walk Notations I, 2012] e começa, lentamente, a levantar vôo, a desenhar no ar um outro percurso [Inês Dantas: Urban Forest I, 2012], um percurso aéreo onde habita a memória de Cosimo nas copas das árvores [Inês Dantas: Sub-Canopy in October, 2012], um reino arbóreo oposto ao reino térreo das estradas e das ruas, onde nascem novos espaços intersticiais, onde os elementos naturais e os elementos artificiais desenham contornos permeáveis e estabelecem relações espaciais distintas [Inês Dantas: Crossroad Notations I, 2013], fazendo deslocar o ar, elevando o centro de gravidade para criar um espaço suspenso não só entre os ramos das árvores e da vegetação, como entre as árvores e os edifícios, as árvores e as ruas e as estradas [Inês Dantas: Supra Canopy I, 2013]. Não são lugares usualmente habitados, são espaços vazios e inexplorados, porque, na maior parte das vezes, as copas mantêm-nos secretamente escondidos, não permitem ver mais além, o que está para lá, mais longe, acima das árvores, mas, sobretudo, nos espaços intervalares. Que espaços podem ser estes? Como é que se habitam? Como é que se apropria um mundo inteiramente novo dado a conhecer por estas imagens?
Em Crouch End Hill, o caminho segue por baixo da estrada e pelas plataformas da antiga estação de Crouch End. É um caminho de aspecto subterrâneo e secreto [Inês Dantas: Expanded Ground in November, 2013], que propicia encontros revolucionários, onde a imagem dos miúdos de Terrain Vague, de Marcel[4], surge no imaginário como figuras pós-modernas de uma revolução bio-orgânica, reclamando para a cidade uma vida na floresta urbana [Inês Dantas: Trees on Tracks, 2013]. Um novo tipo urbano resultante do cruzamento da natureza com os edifícios construídos, habitante dos espaços vazios criados pela sobreposição destes elementos e correspondente aos desejos mais íntimos de experiência de um tecido urbano vivo, com a crença que as árvores terão um papel no futuro da cidade, nos espaços infinitos que criam e nas mais vastas aventuras que propiciam, nas visões novas que abrem sobre a própria cidade, no próprio tecido urbano, que se torna mais fino, mais permeável às mais variadas interpretações e deambulações: psicogeografias contemporâneas de um tecido urbano vivo e orgânico[5].
As árvores tornam-se, nas imagens digitalizadas, o objecto de desejo do espaço, porque não são apenas constituídas por um tronco, ramos e folhas, mas revelam, mostram, tornam visíveis, inúmeras possibilidades de criação de espaços infinitos, espaços onde a gravidade parece ausente e a leveza e a suspensão as únicas forças possíveis. O centro de gravidade desloca-se. A paisagem surge etérea. O corpo desprende-se do chão e deseja fluir através do movimento único gerado pelas nuvens de pontos e, secretamente, deseja manter aquelas áreas livres de um desenho mais perene que as obscureça, que altere a sua natureza quando já revelam por si uma matéria orgânico-vegetal-construída infinitamente plástica que permite criar, dentro do espaço existente, um lugar temporário, onde os vários corpos se cruzam, como numa subtil dança da paisagem…
Tal como esse movimento único, gerado pela nuvens de pontos, cuja percepção só é possível pela representação gerada pelo scanner 3D, o tempo surge comprimido, qual cristal, é um tempo sem medida, um tempo eterno. Para gerar a imagem, são necessárias várias digitalizações, colocando o scanner em diferentes posições de modo a obter o volume total dos objectos e, ao longo do tempo, ao longo das estações do ano, as árvores vão alterando as suas próprias posturas, as folhas caem e surgem novos padrões na sobreposição com os elementos construídos, ou as folhas nascem e o espaço altera-se, revelando outras formas desconhecidas, sempre diferentes. As imagens são, dessa forma, também elas intervalos de tempo e não só de espaço, compressão de espaços intersticiais e de tempos descontínuos, um tempo que fala de um futuro onde as árvores na cidade podem ser ocupadas nos espaços intersticiais que nascem dos intervalos entre estas e os edifícios, espaços ocultos, onde se cria um sistema complexo de relações, como aquelas que Cosimo foi criando no seu reino arbóreo: espaços de lazer e de estar, espaços para repousar ou ver a acção, o movimento da cidade, espaços amorosos. São paisagens emosféricas, onde as emoções criam sucessivas interpretações da paisagem e desenham movimentos imprevistos e ocupações temporárias do espaço …
Da memória de um percurso singular por Parkland Walk, uma última imagem reacende o desejo [Inês Dantas: Micro Galaxy I, 2012]. Uma vista impossível (pela simultaneidade de projecções resultante da sucessão de posições, pelo tempo comprimido entre digitalizações) de camadas urbanas sobrepostas – a rua superior, o túnel inferior, as plataformas da antiga estação de Crouch End, a floresta que ladeia os percursos – cria uma complexa intersecção de diferentes sistemas urbanos, onde tudo pode acontecer… As paisagens emosféricas criam, acima de tudo, um espaço para a especulação.
por Inês Dantas e Susana Ventura, Arqa111
[1] O scanner tridimensional pode ser entendido como uma câmara de 3 dimensões. Vários scans em posições diferentes constituem uma maquete virtual do lugar captado.
[2] ‘Emospheric’ é um neologismo a partir de Emotions and Spheres, conceito utilizado para designar a presença de um sujeito que interpreta emocionalmente as esferas espaciais que atravessa. Temos vindo a desenvolver este conceito nos vários projectos arquitectónicos de *wuda, através da criação de narrativas que precedem a criação arquitectónica.
[3] O presente texto corresponde a um excerto do ensaio “Parkland Walk – Da árvore à paisagem emosférica, do corpo à singular dança dos corpos: sobre Emospheric Landscapes, de Inês Dantas /+wuda”, escrito pela ocasião da inauguração e apresentação da exposição “Emospheric Landscapes”, de Inês Dantas, na Galeria Edge Arts, em Novembro 2013.
[4] Carné, Terrain Vague, Grayfilm SAS, 1960.
[5] As experiências situacionistas despertaram para o acto de deambular pela cidade dando origem a novas formas de representação da mesma, que expressassem em si a experiência subjectiva da apropriação da cidade. Note-se o exemplo do “Mapa psicogeográfico de Veneza”, de Ralph Rumney, datado de 1957 (Richard Brook & Nick Dunn, Urban Maps: Instruments of Narrative and Interpretation in the City, Ashgate, Farnham, Burlington, 2011) . As imagens digitalizadas de Inês Dantas fazem, certamente, parte deste tipo de representação cujo carácter subjectivo da imagem é mais importante do que o carácter documental do representado. Também neste sentido, é relevante o que Jonathan Crary afirma sobre a alteração da percepção que a câmara obscura provocou, sendo esta mais relevante a nível da transformação do sujeito (cartesiano) e só depois, então, a nível da representação técnica e objectiva do mundo real (Jonathan Crary, Techniques of the Observer: On vision and modernity in the nineteenth century, MIT Press, Cambridge, Massachusetts, London, England, 1990).